4 de abril de 2011

Fignolé: “Tropas de ocupação agridem a soberania e a autodeterminação do povo haitiano”

29/03/2011
Dirigente da CAT do Haiti defende saída de soldados da ONU e envio de médicos e engenheiros
Escrito por: Leonardo Wexell Severo
 
 
Em visita à sede nacional da CUT-Brasil, o secretário-geral da Central Autônoma dos Trabalhadores do Haiti (CAT), Louis Fignolé, denunciou a ação do governo dos EUA contra a soberania nacional e o direito do seu povo à autodeterminação. Fignolé condenou o sequestro do ex-presidente haitiano Jean-Batiste Aristide, e o impedimento do seu partido, o Lavalas, “o mais popular do país”, para participar do pleito presidencial, o que torna as recentes eleições viciadas “em prol da manutenção das empresas transnacionais, da superexploração da mão de obra e do saque às riquezas naturais, com a extração de ouro e bauxita”. O secretário-geral da CAT lembrou que passados mais de um ano do terremoto, um milhão e quinhentos mil haitianos, de uma população de oito milhões, continuam vivendo em barracas por falta de ajuda internacional. O sindicalista defendeu a retirada das tropas brasileiras, que no seu entender encontram-se “terceirizadas”, subjugadas aos interesses dos EUA e das demais potências neocoloniais. Em reunião com o secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores, João Antonio Felício, o dirigente haitiano agradeceu a solidariedade recebida dos cutistas e convidou a Central para participar do Congresso da CAT, que será realizado na capital, Porto Príncipe, de 23 a 25 de junho.

Qual a sua avaliação sobre o papel da Minustah (Missão de paz da ONU para a Estabilização no Haiti)?

O Haiti tem uma forte tradição nacionalista, que vem desde a revolução de libertação nacional, da nossa independência em 1804 (o primeiro país livre da América Latina). Nossa presença no Brasil é para informar o povo brasileiro, os movimentos sociais e sindicais, para que nos ajudem a reconquistar a nossa soberania. Esta reconquista passa necessariamente pela retirada das tropas da Minustah do país. Pode ser que vocês, através dos meios de comunicação, sejam induzidos a uma leitura de que as tropas estão lá como “ajuda humanitária” para reconstruir o país. Eu sou obrigado a dizer, por experiência própria, que as tropas estão lá para reprimir, pisoteando a nossa soberania. Vale lembrar que o brasileiro Ricardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, que acompanhou de perto todo o processo, criticou a ação da ONU e das ONGs no país, sendo demitido depois disso.

Há muitas denúncias sobre a picaretagem das ONGs que atuam no país.

As chamadas Organizações Não-Governamentais estão lá para ganhar dinheiro, muito dinheiro, com a miséria do povo haitiano. E também, como é um país tropical, para aproveitar das suas belas praias transitando em jipes 4x4, enquanto parasitam as contribuições internacionais. Por isso é que todo dia tem manifestação contra ONGs no Haiti. Costumamos dizer que há por lá mais ONGS do que haitianos.

O povo haitiano defende a retirada das tropas. É isso o que pretendes pedir na audiência com a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Especial de Direitos Humanos?

Exatamente. Porque as tropas da ONU no Haiti não tem outra característica que a de forças de ocupação. No Haiti não há problema de segurança, isso não existe. Também não há guerra civil. O Brasil deveria se desassociar dos EUA, da França e do Canadá. Em 2004, quando Aristide era presidente, ele interpelou a França para devolver o que nos devia desde a independência. Logo vieram comandos dos Estados Unidos para raptar o presidente.

Uma intervenção descarada...

Óbvio. Podemos inclusive fazer uma associação com a agressão que estão fazendo à Líbia neste momento. A presença de tropas tem como alvo as riquezas do país, visa abrir espaço para as multinacionais e o capital estrangeiro. Querem privatizar nossos países, convertendo nossos territórios numa imensa zona franca, desconsiderando os interesses do povo e a participação dos trabalhadores.


Louis Fignolé (CAT-Haiti), Júlio Turra e João Felício, da CUTE como esta ingerência ocorre?


No primeiro semestre de 2009 fizemos uma grande mobilização, muito importante, para que os trabalhadores recebessem pelo menos cinco dólares diários. As empresas se negaram e as tropas da ONU agiram em favor dos seus interesses. Na capital, Porto Príncipe, a repressão foi feita pelos soldados brasileiros, que são os responsáveis pela área.

Como foi a chegada das tropas estadunidenses?

Logo depois do terremoto de 2 de janeiro de 2010 desembarcaram mais de 12 mil soldados dos Estados Unidos. Agindo por cima da ONU, eles tomaram porto e aeroporto, impedindo qualquer ajuda humanitária. Esses soldados não vieram para auxiliar, nem retirar ninguém de debaixo dos escombros, vieram para meter a mão no que é nosso.

Em meio ao saque, cresce a pobreza e o desemprego explode...

Antes do terremoto havia cerca de 300 mil empregos formais, dentro de uma população de oito milhões de pessoas. Na época, os melhores salários alcançavam 300 dólares mensais. A grande maioria dos trabalhadores recebia menos de três dólares por dia, sem direito social nenhum, sem hora extra como vocês tem no Brasil, 13º salário ou descanso semanal remunerado. Dia não trabalhado não se recebe. Se há alguma queixa contra o patrão, as custas do processo correm por conta do empregado, que trabalha das seis da manhã às seis da tarde, com somente quinze minutos para comer. O nosso Código do Trabalho exige que as fábricas dêem alimentação, mas isso é desrespeitado, pois não há fiscalização nenhuma. Isso faz com que dos três dólares/dia, dois dólares sejam gastos em transporte e alimentação. A informalidade alcança os 80%.

Diante de tantas dificuldades, como atua o movimento sindical?


As grandes empresas, entre elas multinacionais como a norte-americana Fila, pagam espiões para impedir a sindicalização. No caso das Zonas Francas, tanto em Porto Príncipe com seus 12 mil operários, como em Ounaminthe, com seus sete mil trabalhadores, esta é a prática por trás dos altos muros. A pessoa só entra com autorização. As grandes beneficiárias são as empresas de costura de calçados e agasalhos esportivos, marcas dos EUA, mas também da China e da Coreia do Sul.

A alienação da soberania chega ao cúmulo do Congresso dos EUA votar uma lei para o Haiti. Como foi isso?

A Lei Hope (Esperança) foi votada pelo Congresso dos Estados Unidos para que fosse aplicada no Haiti, depois que eles raptaram o presidente Aristide. Disseram que iriam criar 50 mil empregos. Pegaram as nossas riquezas, trouxeram matéria-prima do estrangeiro, baratearam a mão-de-obra, terceirizaram e declararam ter criado cinco mil empregos. O fato é que ninguém sabe onde estão, prova que a lei era para alavancar ainda mais os seus lucros. Além da exploração da mão-de-obra, querem as nossas minas de ouro, a bauxita, as nossas riquezas culturais...

Há pessoas no Brasil que afirmam que a retirada das tropas traria o caos ao Haiti e que agravaria a situação de violência pelas ruas. O que achas disso?

O que eu tenho a dizer é que tropas militares, não importa sua nacionalidade, fazem o papel de tropas militares. Infelizmente, o Brasil está terceirizado no Haiti, porque o comando está nas mãos das grandes potências, particularmente dos EUA. Para nós, não é uma bandeira nos ombros dos soldados que faz a diferença.

E em relação à ação dos cubanos e venezuelanos?

Neste caso existe uma cooperação mais do que evidente, bem concreta, tanto por parte de Cuba quanto da Venezuela. Estes países não têm tropas, têm colaboradores. Gostaríamos de ter mais presenças deste tipo. Seria muito melhor que o Brasil retirasse seus soldados e enviasse professores de educação física especializados em futebol, engenheiros, médicos e enfermeiros. O Haiti precisa de ajuda, não de tropas.

Como reagem os brasileiros que vivem esta realidade nas ruas de Porto Príncipe ou das demais cidades haitianas?

Em 2008, representando a CUT-Brasil, o companheiro Júlio Turra esteve junto conosco numa entrevista com o comandante brasileiro das tropas, general Santos Cruz, que concordou que o problema não estava na falta de segurança ou de criminalidade, mas na ausência de desenvolvimento. Portanto, a decisão é política. O presidente Lula aceitou dirigir as tropas. Cabe agora à presidenta Dilma retirá-las. Isso tem de mudar. Vou ter uma entrevista com o governo em que vou reafirmar esta posição: nem o Brasil nem o Haiti merecem que esta situação continue. A soberania de um povo é inegociável.

As marcas do terremoto ainda são muito visíveis?

Claro, dos bilhões prometidos por EUA, Canadá e França, nada chegou. Os únicos que ajudaram financeiramente foram Brasil e Venezuela. Quem dirige o presidente do Haiti é o Comité Provisório para a Reconstrução do Haiti (CIRH), presidido pelo ex-presidente dos EUA, Bill Clinton. Obviamente, em defesa do interesse das multinacionais. A última reunião do CIRH foi na República Dominicana, não foi sequer em nosso país. Clinton anunciou que serão gerados 60 mil empregos no setor têxtil, trabalho precário, evidentemente, bem barato para as suas empresas.

O processo eleitoral ocorre em meio a denúncias de fraudes, sem a participação do maior partido, o Lavalas, do ex-presidente Aristide, e com a participação de menos de um quarto do eleitorado. Isso é democracia?

Durante o primeiro turno a situação ficou muito confusa, ainda mais quando Baby Doc - ex-ditador apoiado pelos EUA e responsável por dezenas de milhares de presos e mortos - desembarcou. Com a sua chegada, o atual presidente, René Préval, foi obrigado a também dar passaporte diplomático para Aristide, que fazia cinco anos que o Lavalas, que é o partido mais popular do Haiti, pedia ao governo que deixasse retornar ao país; sempre negado. Não faltaram pressões dos EUA sobre o governo da África do Sul, porque queriam que ele só retornasse depois do segundo turno. Mesmo estando há sete anos no exílio, Aristide é o nome mais popular. Por isso o governo mantém o Lavalas na ilegalidade, sobre o ridículo pretexto de que o seu responsável político era Aristide e que não havia como saber se os documentos que o partido dispunha eram verdadeiros, pois não havia como checar. Os ocupantes tinham medo de que Preval fosse apeado do poder por Aristide.

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